“Portadoras de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de cada povo perduram no presente como o testemunho vivo de suas tradições seculares. A humanidade, cada vez mais consciente da unidade dos valores humanos, as considera um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade.”
(Carta de Veneza, 1964)
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 23, define que “É competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: […] III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”; e ainda, em seu artigo 216, no § 1º, temos que “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. (Grifo nosso)
Recentemente, o Instituto dos Arquitetos do Brasil, entidade centenária dedicada à arquitetura e ao Urbanismo no Brasil, departamento do Estado do Espírito Santo, teve conhecimento por meio das mídias sociais do projeto “Casa Cor 2022 – Vista do Forte” e, através deste documento, vem cumprir seu papel constitucional de proteger o patrimônio cultural brasileiro.
O projeto propõe uma intervenção no Forte de São Francisco Xavier da Barra, no município de Vila Velha, no Espírito Santo, que, na análise técnica dos arquitetos deste instituto, causará danos ao patrimônio cultural.
O Forte de São Francisco Xavier teve sua construção iniciada no fim do século XVII, estando concluída na primeira década do século XVIII. Em 1726, o Engenheiro Nicolau de Abreu Carvalho conduziu uma reforma no forte, que manteve o caráter circular que conhecemos hoje. Esta concepção arquitetônica circular do Forte de Piratininga teve como referência projetual os fortes de São Lourenço da Cabeça Seca (Portugal), e de São Marcelo (Salvador, Bahia).
No Brasil a forma circular adotada em fortes é rara e remonta aos princípios renascentistas.
A importância do Forte de São Francisco Xavier da Barra se dá, ainda, por ter sido o primeiro elemento defensivo da Capitania do Espírito Santo. Ainda que o formato original seja distinto do atual, o recinto fortificado, conforme atesta a historiografia foi edificado por Vasco Fernandes Coutinho. Há menção deste elemento defensivo denominado Forte do Espírito Santo no início da colonização. No Século XVI, em 1592, há menção na historiografia do Forte de Piratininga, pois, dele se fez o ataque aos ingleses comandados pelo corsário Thomas Cavendish. No Século XVII, com a ameaça de ataques ingleses e holandeses, a estrutura defensiva da entrada da baía de Vitória é citada em diferentes momentos. Mas, é no Século XVIII que se tem a elaboração do projeto do forte com a tipologia arquitetônica atual, ou seja, circular. Erigido para defender a entrada da Baía de Vitória e impedir o contrabando do ouro da Minas Gerais, o forte teve o apuro dos princípios renascentistas em seu partido arquitetônico.
Trata-se de um bem cultural de valor inestimável, que já foi listado como de interesse de tombamento no processo Iphan 01458.003599.2010_16, que trata do tombamento em conjunto das fortificações brasileiras – e que, infelizmente, por motivos de corpo técnico insuficiente para atender a todas as demandas da autarquia, não teve continuidade.
O primeiro pedido de tombamento exclusivo para o Forte de São Francisco Xavier da Barra foi realizado em 05 de julho de 2022, e consta do Processo nº 01409.000279/2022-15. Conforme preconiza o Art. 4o da Portaria lphan no 11 de 11/09/1986, o processo foi enviado para o Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (Depam) para abertura do Processo “T”. Em 11 de julho de 2022 o Arquivo Central do Iphan procedeu à abertura do processo de tombamento registrado sob o número 2029-T-22. Até o presente momento, desconhecemos qualquer manifestação contrária ao tombamento no âmbito do referido processo.
O pedido de tombamento foi solicitado pelo Prof. Dr. Mário Mendonça de Oliveira, membro fundador do ICOFORT/ICOMOS (International Scientific Committee on Fortifications and Military Heritage), pelo reconhecimento do valor excepcional do Forte de Piratininga. O Prof. Dr. Mário Mendonça de Oliveira trabalhou por décadas no IPHAN e é referência internacional em pesquisas, publicações sobre a Engenharia Militar e elaboração de projetos em edificações militares.
No dia 14 de julho de 2022, após ser constatado que a proposta de intervenção para o Forte de Piratininga se insere no tema “projetos de interiores”, iniciativa que fere os preceitos definidos e referendados nas cartas patrimoniais internacionais e nas diretrizes de intervenção do IPHAN, foi solicitado, em caráter de urgência o tombamento do forte.
No que tange as questões legais e procedimentos acerca dos processos de Tombamento, está divulgado no Portal do Iphan, o seguinte conteúdo, consultado no dia 29 de julho de 2022, e cuja referência é o Decreto Lei n0 25 de 1937, (disponível em: https://iphan.gov.br/montarPaginaSecao.do?id=12576&retorno=paginaIphan):
O tombamento é um ato administrativo realizado pelo Poder Público, nos níveis federal, estadual ou municipal. Os tombamentos federais são responsabilidade do IPHAN e começam pelo pedido de abertura do processo, por iniciativa de qualquer cidadão ou instituição pública. O objetivo é preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo a destruição e/ou descaracterização de tais bens.(…)
O processo de tombamento, após avaliação técnica preliminar, é submetido à deliberação das unidades técnicas responsáveis pela proteção aos bens culturais brasileiros. Caso seja aprovada a intenção de proteger um determinado bem, seja cultural ou natural, é expedida uma notificação ao seu proprietário.
Essa notificação significa que o bem já se encontra sob proteção legal, até que seja tomada a decisão final, depois de o processo ser devidamente instruído, ter a aprovação do tombamento pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural e a homologação ministerial publicada no Diário Oficial. O processo é concluído com a inscrição no Livro do Tombo e a comunicação formal do tombamento aos proprietários.
Para além do tombamento em nível federal, é importante ressaltar que o Brasil é cossignatário do ICOFORT ICOMOS que estabelece diretrizes projetuais para intervenções em fortificações históricas, quais sejam:
- Todas intervenções devem ser baseadas em um Plano de Conservação que inclua minimamente: estudo histórico do sítio e de todos os períodos de desenvolvimento do mesmo e de seus usos; estudo do desenvolvimento morfológico; levantamento topográfico e planimétrico; avaliação de estudos arqueológicos; avaliação estrutural com análise, diagnóstico e monitoramento para preservação; estudo da paisagem em que o bem está inserido; estudo interpretativo; análise de viabilidade de reutilização; análise de uso; critérios e análise de recomendações; avaliação de riscos/plano de preparação para riscos; plano de negócios e operações; pesquisas de visitantes/estudos de gestão de visitantes; plano de proteção; plano de gerenciamento. Todo o Projeto de intervenção em fortificações deve ser desenvolvido por uma equipe interdisciplinar de profissionais devidamente qualificados, com conhecimento e experiência específicos em recintos fortificados similares e patrimônio militar;
- Todas as intervenções devem basear-se na integração holística dos valores do sítio em relação aos sistemas defensivos e envolventes;
- Todas as intervenções devem ser compatíveis com os elementos e características das fortificações e património militar de acordo com a Carta do Zimbabué e em relação à Tríade Vitruviana: “Firmitas, Utilitas et Venustas”. “A escolha entre técnicas “tradicionais” e “inovadoras” devem ser ponderados caso a caso e dar preferência aos menos invasivos e mais compatíveis com os valores patrimoniais, considerando os requisitos de segurança e durabilidade. (Carta-Princípios para a Análise, Conservação e Restauro Estrutural do Património Arquitectónico do ICOMOS, 2003). A natureza das operações militares deve ser considerada especialmente tendo em vista qualquer “perda” anterior de tecido ou destruição que possa ser considerada como um marcador de um evento histórico que deve ser conservado e não restaurado.
- O conceito de compatibilidade “Firmitas” deve ser entendido como a compatibilidade mecânica entre os materiais históricos e os materiais utilizados para restauração e/ou consolidação estrutural, sempre privilegiando a intervenção de impacto mínimo;
- Compatibilidade funcional ou “Utilitas” é a sobrevivência dos elementos característicos da fortificação do ponto de vista do seu desenho funcional original e do traçado defensivo das suas vias e acessos;
- Compatibilidade estética ou “Venustas” significa que a intervenção deve ser esteticamente compatível com a estrutura e ambiente originais. No entanto, deve também garantir a permanência da leitura estratigráfica anterior à intervenção e a legibilidade estratigráfica da própria intervenção. Compatibilidade estética ou “Venustas” significa que a intervenção deve ser esteticamente compatível com a estrutura e ambiente originais. No entanto, deve também garantir a permanência da leitura estratigráfica anterior à intervenção e a legibilidade estratigráfica da própria intervenção.
Como legislação incidente na área, para qualquer projeto no Forte Piratininga, deve ser observado ainda, a Portaria de Entorno do Convento da Penha e o Plano Diretor Municipal de Vila Velha, considerando que aquela edificação se encontra inserida no Sítio Histórico da Prainha.
Até o presente momento, desconhecemos a análise do Iphan sobre a intervenção proposta no imóvel no que tange à interferência na visibilidade e na ambiência do bem tombado, Outeiro e Convento de Nossa Senhora da Penha; bem como, desconhecemos a apresentação da referida proposta ao Conselho de Patrimônio da Prefeitura Municipal de Vila Velha e seu parecer – caso tenha sido apresentado.
Não obstante, é salutar ainda dizer que o projeto deve ser apresentado ainda ao Corpo de Bombeiros, para que os usuários tenham segurança ao utilizar o espaço proposto ou teremos uma tragédia anunciada.
Para tudo isso, é preciso que haja projeto e não apenas uma proposta com imagens de “como ficará” o forte após a intervenção. Projeto com Registro de Responsabilidade Técnica (CAU) e Anotação de Responsabilidade Técnica (CREA) dos profissionais autores dos projetos arquitetônico e complementares.
A inexistência de um projeto que siga as orientações do ICOFORT/ICOMOS para o bem militar, coloca este bem em risco. Uma fortificação que sempre nos protegeu dos inimigos externos, agora corre o risco de sofrer danos irreparáveis e cabe a nós nos manifestarmos contra essa imperícia.
É importante salientar que, antes de mais nada, uma proposta para um bem de tamanha importância para o patrimônio cultural brasileiro não pode ser analisada apenas por imagens disponibilizadas pela internet. É necessário que seus responsáveis técnicos qualificados apresentem o projeto nos órgãos competentes para a devida análise.
Mas como, infelizmente, todo o conhecimento que temos da proposta se dá através de imagens divulgadas nas mídias sociais (https://www.instagram.com/tv/CfZ5DVTNNti/) que mostram uma estrutura metálica engastada na parede externa do bem e com pilares sustentando o seu balanço, traremos uma breve demonstração, por imagens, de como essa intervenção afeta visualmente o patrimônio – uma vez que não temos o projeto para analisar as interferências na estrutura física e nem mesmo um diagnóstico para vislumbrar os possíveis danos ao patrimônio arqueológico.
Na primeira imagem já é nítido como a estrutura proposta secciona a compreensão do edifício como um todo, alterando a imagem consolidada do bem. Além disso, o elemento proposto muda a escala da edificação, achatando a muralha dos canhões, projetando-se sobre ela e se impondo sobre ela, destacando-se na paisagem e interferindo na visibilidade do bem cultural que resulta ocultado pela estrutura proposta. Este novo elemento atrai o olhar do espectador para si e coloca em pano de fundo o mais importante elemento de um forte: sua muralha com seus canhões.
A estrutura é ainda toda engastada na parede da fachada do forte. Mas, aguentaria esse edifício de três séculos, o peso desta nova estrutura chumbada nas suas paredes e no seu piso? Qual o impacto que esse engastamento pode causar nas paredes do ponto de vista da estabilidade?
Aqui temos novamente a estrutura concorrendo visualmente com a muralha dos canhões e pessoas olhando para o horizonte, sem perceber a importância do que está sob seus pés…
Nesta imagem, temos a intervenção vista do terrapleno (nome técnico do pátio do forte) e mais uma vez vemos como a estrutura proposta se sobrepõe visualmente sobre a edificação, concorrendo com ela, seccionando-a, mudando a sua escala.
Para além da visibilidade, podemos citar como riscos dessa intervenção: risco de (1) perda do material construtivo; (2) alteração da tipologia arquitetônica com modificações de vãos, cômodos etc.; (3) perda de vestígios arqueológicos relevantes que demonstrem a evolução da construção ao longo dos séculos; (4) e comprometimento da estrutura (fundação, muralhas e paredes); (5) risco de morte aos usuários – uma vez que o projeto não foi analisado pelo Corpo de Bombeiros e, assim, não temos garantias que aquela estrutura é segura para os futuros usuários do forte.
A inexistência de um projeto, por si só, já deveria impossibilitar o início das obras, mas, infelizmente, receia-se que isto não inviabilize a mesma. E, conforme podemos demonstrar, apenas por estas imagens, a presente proposta de intervenção não atende à tríade Vitruviana: “Firmitas, Utilitas et Venustas”, ou seja: não há estudos que nos assegurem a compatibilidade mecânica entre os materiais – o que poderia comprometer a estrutura, e nem mesmo a intervenção é a de menor impacto possível; os elementos característicos da fortificação do ponto de vista do seu desenho funcional original e do traçado defensivo das suas vias e acessos
– bem como seu entendimento – serão visualmente impactados pela presença da estrutura, que compromete a leitura da edificação em toda sua plenitude; e a intervenção não é esteticamente compatível com a estrutura e ambiente originais e não garante a permanência da leitura estratigráfica anterior à intervenção e a legibilidade estratigráfica da própria intervenção.
Ressalta-se que também não há o Diagnóstico do Estado de Conservação do Forte de Piratininga que fundamentaria o Projeto Executivo de Estrutura do Forte de Piratininga. Logo, o peso da estrutura metálica proposta poderá alterar ou comprometer de forma irreparável o solo onde está construído o forte, bem como, seu sistema construtivo, formado em parte por alvenaria de pedras, notadamente, a muralha, com mais de 300 anos. Neste sentido, há risco de comprometimento das fundações do recinto militar, assim como, das demais edificações do entorno imediato nas instalações do 38 B.I.
Visando garantir que o forte seja preservado para esta e para as futuras gerações, o Instituto dos Arquitetos do Brasil, recomenda que:
- Seja contratada uma equipe multidisciplinar com capacitação comprovada para desenvolver o projeto de intervenção do forte, de acordo com os preceitos do ICOFORT ICOMOS;
- Os profissionais apresentem registro de responsabilidade técnica do projeto proposto;
- Que o projeto seja apresentado aos órgãos competentes, para análise, parecer e aprovação – se assim couber; incluindo o Iphan, Prefeitura Municipal de Vila Velha, Corpo de Bombeiros e outros;
- Que o projeto seja amplamente debatido com a sociedade, notadamente, com os moradores do Sítio Histórico da Prainha em Audiência Pública.
Destacamos que é do interesse de todos e do IAB, como organização civil, a restauração de bens imóveis de valor histórico bem como sua utilização pela sociedade. Mas é preciso que, para isso, seja realizado um projeto adequado para a proteção do bem, com o respeito que a memória do mesmo – que sempre nos protegeu – merece.
Na oportunidade, o IAB se coloca à disposição da sociedade para acompanhar o desenvolvimento de uma proposta coerente com as especificidades do Forte São Francisco Xavier, afim de garantir sua proteção e preservação.
Diretoria do IAB-ES